Um pouco de
História
Quem, em Palmela, sente aproximar-se o mês de setembro sabe que, muito em breve, pelas ruas, andarão carros a transportar gente para o trabalho das vinhas e uva para os lagares. E sabe também que, com a mesma brevidade, chegará a Festa das Vindimas, já inscrita na rotina da comunidade.
A Festa traz à vila o arraial, o corrupio da gente, música nas ruas, cortejos e vinho, muito vinho. Foi em 1963 que se realizou a primeira edição da Festa das Vindimas, para cumprimento do desejo de todos aqueles que sonhavam com uma grande festa anual, que exaltasse os valores e riquezas da região que neste caso são, indiscutivelmente, a Uva e o Vinho.
Havia já alguns anos que homens como Álvaro Cardoso e Tito Monteiro partilhavam a vontade da criação de uma festa com este cariz. Tito Monteiro já em 1958 idealiza as festas, chegando mesmo a projetar uma carreta, a qual simbolizaria e anunciaria a Festa das Vindimas de Palmela.
Álvaro Cardoso analisa a melhor data para a realização destes festejos. Impunha-se, obviamente, que acontecessem durante o período da colheita das uvas, ou seja, de fins do mês de agosto a princípios de setembro e que não coincidissem com outras festas vizinhas. Ora, se a Festa em honra de Nossa Senhora da Atalaia, no Montijo, decorria no último domingo de agosto e as festas de nossa Senhora da Boa Viagem, na Moita, no segundo domingo de setembro, restava o primeiro domingo do mesmo mês, data que se impôs e para a qual ficaria agendada, em Palmela, a Festa das Vindimas.
Também em 1958, Álvaro Cardoso deslocar-se-á a Jerez de La Frontera para aí assistir as “Festas do Vinho”. Como ele próprio relata” … vi que ia ser bonito (…) o Cortejo dos Camponeses, com os trajos à espanhola, com os mestres da vindima das herdades e havia sempre uma rainha que era escolhida entre as casas grandes de Jerez (…) e que ia num carro todo bonito, com duas parelhas de cavalos a puxar. Tinha o seu trono na praça principal de Jerez e onde os capatazes iam fazer a oferta das uvas, em cestos grandes, que eram pisados no dia seguinte junto da matriz, numa lagariça (…)”.
Mas o período era politicamente conturbado sendo a festa continuamente adiada, como afirmou Álvaro Cardoso: ” … houve o problema de Goa e o problema de África em 1961 e nós achámos que não havia ambiente para a Festa (…) foi-se anuindo ate surgir em 1963″.
No ano de 1963 constituiu-se, finalmente, uma comissão à qual aderiram 14 homens, a saber: Álvaro Cardoso, Jacinto Augusto Pereira, José Novaes Carvalho e Silva, Manuel Joaquim Barrocas, Artur Botelho da Silva Donga, Joaquim Augusto Costa, Victor Manuel Barrocas Borrego, Ezequiel Rodrigues Caleira, Ulisses Caetano de Oliveira Machado, João Luís Camolas de Oliveira e Silva, Firmino Camolas Contente, Acácio Ezequiel Chula, Henrique Miranda Rodrigues, Manuel Rodrigues Pinto.
As palavras de Manuel Rodrigues Pinto (membro fundador), “sendo os dois primeiros, na altura, Presidente e Vice-Presidente da Câmara Municipal, respetivamente, e cuja influência se ficou devendo a oficialização das referidas Festas e o indispensável patrocínio.”
O Espírito das Festas:
Propaganda e Turismo
Segundo Tito Monteiro, “o espírito desta festa foi criar condições para que os vinhos de Palmela se pudessem promover”.
Havia que divulgar uma das principais riquezas da região, ou seja, o vinho e os vitivinicultores.
Ora, já na Voz de Palmela de 1964 pode ler-se o seguinte: ” … no que toca a atividade vinícola, a propaganda gerada em torno dos nossos vinhos criara maior interesse nos consumidores e nos compradores de outras regiões, em os conhecer e adquirir, no que serão beneficiados todos os tipos de vinho e, em especial, os vinhos de marca. (…) A propaganda da nossa terra será espalhada aos quatro ventos e os benefícios futuros não se farão esperar; uma vez que saibamos receber e estejamos preparados para isso (…) uma vez que a nossa estrutura turística esteja suficientemente delineada e implantada.”
Em 1967 Hélder Machado escrevia “apesar das circunstâncias adversas, todavia, e felizmente devemos constatar que em relação a algumas regiões temos progredido de forma bem visível e que podemos continuar a progredir (…). É de indubitável certeza que a Festa tem contribuído, de forma bastante decisiva, para o desenvolvimento turístico da região, pelo extraordinário número de forasteiros, que atraídos pela sua fama debandam até Palmela.
Durante os quatro dias de realização afluem à nossa terra, dezenas de milhar de turistas, quer nacionais quer estrangeiros, não sendo exagero afirmar que a Festa das Vindimas, já é um autêntico cartaz internacional.”
Em 1967 alguém escreve “… os hábitos, costumes e atividades regionais, são fatores que devem prevalecer para melhor se expandir o interesse turístico da região, fazendo sentir ao visitante, o ambiente acolhedor que os naturais da terra generosamente lhe oferecem.”
Ora, estas ações vão ao encontro da tendência e influência que se vivia na época e cujo aspeto mais importante residiu na campanha dita de reaportuguesamento de Portugal, através da mensagem difundida pelo Secretariado de Propaganda Nacional, a quem estatutariamente cabia a missão de gerar e incutir a correspondente imagem do país.
António Ferro escreverá “O turista, acima de tudo, é um esfomeado de pitoresco, um caçador de coisas diferentes, de novas sensações e visões. Ora, Portugal é um cofre de velhas e coloridas coisas que não é difícil trazer à superfície … “.
Era o espírito da época, empenhado em exaltar a identidade, os valores locais, atrair para a simplicidade afinal “Quando a vontade de um povo, o seu bairrismo e dedicação, conseguem fazer duma terra, ponto de atração turística, chamando a si a presença de milhares de forasteiros durante cinco dias de festa, vindos de todos os pontos do país, pode esse povo orgulhar-se de possuir homens capazes de mostrar quanto se consegue com esforço e sacrifício de vária ordem, possuir aquilo a que muito justamente podemos classificar de verdadeiros obreiros e defensores da valorização de Palmela, expressão máxima da raça e da nobreza do histórico povo português.”
O Culto do Vinho:
entre o Sagrado e o Profano
As ruas enchem-se de sons; às 8 horas destes dias a alvorada faz-se com morteiros e “um grupo musical típico da região, com fantasias alusivas às festas” dão a volta à vila, ou seja, os gaiteiros animam as ruas para anunciar que a hora é de festa.
Desde o primeiro ano, tornou-se bastante claro que a Festa das Vindimas seria pautada por três grandes momentos tão importantes, quanto distintos. Seriam eles: a Pisa da Uva e Bênção do Primeiro Mosto, o Cortejo Alegórico e a Eleição da Rainha.
1963: de 31 de agosto a 3 de setembro os dias foram de alegria. É no sábado, ao início da noite, que se inaugura o espaço. Uma salva de morteiro anuncia a abertura da Festa, ilumina-se o arraial e dá-se início à feira franca.
Pisa e Benção do
Primeiro Mosto
Domingo foi o dia marcado para a realização da cerimónia da Pisa da Uva e Bênção do Primeiro Mostro que, à semelhança do que sucedia nas Festas do Vinho de Jerez de la Frontera, também em Palmela é benzido e ofertado.
Um cortejo de camponeses transportava em grandes cestos as primeiras uvas das vinhas do concelho, caminhando do Largo do Chafariz rumo ao Largo do Município.
Víctor Borrego diz-nos que este momento da Festa “… esteve muitos anos, praticamente ligado às pessoas da Casa Agrícola Humberto da Silva Cardoso, eram eles que traziam aquelas pessoas, que trabalhavam lá na adega, nas vindimas (…) e vinham com os seus trajes (…). Transportavam depois a uva e eram eles que faziam a pisa (…).
Todos os cestos são despejados dentro de uma lagariça, colocada perto da igreja de S. Pedro, onde a uva é pisada, para daí brotar o primeiro mosto. Logo que o fruto se transforma em mosto, é recolhida uma amostra, publicamente, analisada pelo Eng. Jacinto Pereira. Aferido o seu grau alcoólico, transporta-se o líquido dentro de 6 pequenos barris até ao altar; lugar onde é benzido.
Deste mosto resultam vários litros de vinho, posteriormente distribuídos por todas as paróquias do concelho, para a celebração da Eucaristia.
Em 1968, Manuel Rodrigues Pinto afirma o seguinte: “Trata-se de um ato que, quanto a mim, não apenas simboliza, concretamente, na essência, a Festa das Vindimas, como ainda muito principalmente todo o valoroso labor das gentes da nossa terra na árdua tarefa de fabricar o vinho. É a altura em que bendizemos as glórias dos sacrifícios passados, agradecemos o verdadeiro motivo de engrandecimento da nossa região, louvamos poder continuar a contar com tão louvável riqueza.”
Cortejo
Alegórico
Para as 17 horas, também de Domingo, é marcado o Cortejo Alegórico alusivo às Vindimas. É o dia grande!
Todos os que, pela manhã, participaram no Cortejo dos Camponeses, permaneceram em Palmela para, ao fim da tarde, integrarem também o Cortejo Alegórico.
No primeiro ano, o Cortejo Alegórico não se diferenciou, significativamente, do Cortejo de Camponeses, como lembra Álvaro Cardoso “… o primeiro ano foi modesto, foi mais à base de materiais de lavoura (…) e de pessoas do campo (…). A nossa casa trazia 80 pessoas, comprei botas para essa gente toda, chapéus para essa gente toda (…). O Cortejo foi feito assim”, com a mesma gente, os mesmos materiais.
Nos anos que se seguiram as Casas Agrícolas prepararam carros alegóricos que apresentaram no Cortejo, como explica Víctor Borrego: ”… se a Adega Cooperativa de Palmela queria fazer um carro ia ter com uma pessoa que sabia fazer (…) pagava-lhe os desenhos e eles, com o seu pessoal, compunham o carro, depois a Casa Emídio de Oliveira a mesma coisa, a Casa Álvaro Cardoso (…); cada uma das casas agrícolas, vitivinícolas, fundamentalmente, compunham o carro a seu belo prazer, depois havia outras pessoas, que nós próprios sabíamos que estavam a fazer carros (…) esses púnhamo-los na frente do cortejo, ( … ) deixávamos os carros mais bonitos irem na parte de trás.
A Eleição da
Rainha
A Rainha, o símbolo feminino da Festa, a representante, segundo Vítor Borrego “da beleza aqui das moças de Palmela”, presente em todos os atos da festa, participa no Cortejo Alegórico, ocupando o último carro.
É eleita pela primeira vez nas Festas de 1964, no espetáculo de “Eleição e Coroação da Rainha das Vindimas” realizado no primeiro dia do evento.
A rainha de 1963 não foi eleita, mas escolhida de entre as várias raparigas que trabalhavam num atelier de costura: no atelier da “Dona Georgina” situado, em Palmela, na Rua de Olivença n.º 1. Segundo recorda Álvaro Cardoso, “… não houve eleição da rainha (…); foi escolhida (…) porque não havia tempo para fazer eleição nenhuma. Não foi eleita, arranjou-se um vestido bonito (…) a minha mulher encarregou-se de comprar a coroa (…) e assim foi.”
Nos anos que se seguiram, procedeu-se à eleição, através de duas eliminatórias, dois espetáculos realizados no Cineteatro São João.
Segundo Víctor Borrego “… era sempre casa cheia … ) e uma loucura para arranjar bilhetes para os dois espetáculos (…). Formavam-se filas enormes nos dias em que a gente dizia: – Abriu hoje a venda de bilhetes na Comissão. Esgotavam-se praticamente nessa noite os dois espetáculos.”
Todos os anos, eram muitas as raparigas, candidatas ao trono, como recorda Dilar Fragoso, Rainha da Festa das Vindimas em 1968, “… ser escolhida (…) honrava-nos muito. Nós tínhamos um certo orgulho em ser (…) a figura principal da Festa das Vindimas, que era uma Festa com grande projeção (…). A Rainha das Vindimas tem um lugar muito nobre, porque o Cortejo (…) é aquilo de que toda a gente fala da Festa das Vindimas (…). É a figura que encerra o Cortejo (…) como que a agradecer a presença de todos os que cá vêm.”
Outras
atrações
Além das três etapas mais importantes, a Festa é recheada de muitos outros atrativos. Outros “números do programa” que, segundo a Comissão das Festas de 1965, têm também a seu cargo uma parte de atração turística, embora em escala mais reduzida em virtude da sua repetição na maioria das festas que se fazem no distrito; mas constituindo a parte de diversão, estabelecem o equilíbrio necessário para impor a nossa festa à aceitação dos turistas.
No Programa da Festa de 1963 poderá ler-se “Na verbena de Verão e Sociedade de Recreio haverá bailes todas as noites”; “a feira franca repleta de variadíssimas atrações, funcionará todas as noites até de madrugada.”
Em 1964 é acrescentado “Estão assegurados os transportes pela empresa de camionagem BELOS durante todos os dias de Festa”; “No Pavilhão de Provas, poderá deliciar-se com os bons vinhos da nossa região.”
O famoso
Arraial
Anuncia a presença das Festas e, se bem concebido, descreve a sua temática. Daí a sua grande importância no sucesso destes festejos, já que parece haver um grande esforço, por parte das várias comissões, para que os ornamentos sejam adequados e quem visite as Festas de Palmela perceba, de imediato, que aqui se festejam as Vindimas, a Uva e o Vinho.
O Fogo de
artifício
Durante todos os dias de festa, a vila é acordada com urna salva de morteiros, e se algum elemento distingue a Festa das Vindimas de outras festividades que aqui em Palmela tiveram lugar, é a regular apresentação de fogos. Sábado, domingo e terça eram os dias dos fogos, sendo o de terça-feira, dia de encerramento, o mais espetacular.
Em 1967 as Festas terminarão, como habitualmente “às 0,30 h – sensacional sessão de fogo de artifício com vistoso e deslumbrante “bouquet”. Mas acrescidas de uma novidade “no final um número de verdadeira apoteose. No Castelo, Simulacro de Incêndio. Um número de grande categoria.”, “um número verdadeiramente espetacular”, que “por ser inédito em Portugal, deslumbra o espectador”.
Nos últimos anos, por motivos relacionados com a segurança e preservação do Parque Natural da Arrábida e as proibições de realização de fogos nos meses quentes de verão, deixaram de se realizar espetáculos com fogo de artifício na Festa das Vindimas.
O Sagrado impera
sobre o Profano
Em 1968, Álvaro Cardoso nota o seguinte: “Fala-se do arraial, discute-se o arraial, se é maior ou mais pequeno, prepara-se o melhor possível o cortejo, faz-se um esforço para que o fogo seja deslumbrante, mas … o principal, a nosso ver, bem entendido, continua como no 1.° ano das Festas (…). Esse fulcro, essa razão de ser, é … a Pisa da Uva (…) onde vamos agradecer a Deus a colheita que nos proporciona e, ao mesmo tempo, pedir-lhe a Sua proteção para as nossas vinhas, que são a principal riqueza dos nossos campos…
Cinquenta anos passados e o momento mais importante, embora menos visível, continua a ser a Pisa e Bênção do Primeiro Mosto, prova de que o sagrado impera sobre o profano. E se, no Cortejo, os camponeses foram, há muito, substituídos por crianças, o restante ritual permanece fiel às suas origens.
O mosto, resultante dessa pisa, será então analisado, pelo Grão-Mestre da Ordem Enófila de Santiago. Álvaro Cardoso explica, nomeadamente que “o mosto é o sumo da uva, antes de fermentado (…), que daquelas uvas de várias qualidades, sairá o vinho (…). Entretanto, a ordem reúne- se, medem a densidade e a temperatura (…). Utilizam-se as tabelas e diz-se que, provavelmente, o vinho que sair daquele mosto lerá tantos graus e faz-se uma breve locução ao valor do vinho e às suas qualidades terapêuticas (…)”.
O mosto analisado é, então, colocado em pequenos barris que, segundo Álvaro Cardoso, “… ainda são os primeiros.” Esses barris são levados até a igreja, na celebração da missa, no momento do ofertório. Simbolicamente, são soltas pombas brancas no decurso desta cerimónia.
O vinho, resultante deste primeiro mosto, destina-se, tal como há 50 anos, às Paróquias do Concelho, para que esteja presente na celebração de todas as eucaristias e seja servido no momento da Comunhão.